Wilson
Figueiredo
Não podia ocorrer melhor
data para o senador José Sarney vir a público, aproveitando a oportunidade da passagem de ano, dia 31 de dezembro, e anunciar que o dia seguinte do novo ano não
contasse mais com ele: começaria a se retirar da cena política e, depois de 60
anos nesse beco sem saída, deixava a quem interessasse a experiência acumulada
por ele, dentro ou fora do poder, ao longo do tempo. A quem interessar possa,
legou as razões em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo
naquela mesma data. Não foi o acaso, nem ato falho (segundo o dialeto
freudiano), nem pela oportunidade, mas certamente a soma de todas as razões
para jogar a toalha com a sóbria dignidade da despedida e a circunstância de
uma vida inteira.
Sarney não pretende ser candidato senão a suplente dele
próprio
Sarney está de saída e se
apresenta, nas reflexões finais relativas a 24 anos ininterruptos no
Congresso, com números à mão (quando seu mandato de senador se
esgotar em 2015, já à vista), não pretende ser candidato senão a suplente
dele próprio, entre o que poderia ter sido e o que foi: nenhuma reparação
a cobrar e, aos olhos da opinião pública, nada de ressentimentos para
justificar o que tenha feito ou deixado de fazer. A recomendação final tem o
sotaque da sabedoria que não se aprende nos livros: a seu ver, todos os
presidentes da República deveriam, depois de exercer o mandato, ser proibidos
legalmente de disputar qualquer cargo público eletivo. Medida altamente
profilática.
No último dia do ano,
vive-se por tradição a ilusão de que, no primeiro do novo ano, tudo deixa de
ser como era, e passa a ser como deveria ter sido e não foi. Desde 1955, quando
obteve nas urnas o mandato de deputado federal pelo Maranhão, José Ribamar
Sarney caiu nas malhas da política, já na terceira encarnação republicana, a
Constituição de 1946, e deparou com a obrigação de fazer opções que, cada vez
mais, dependiam das circunstâncias do seu tempo e menos da própria consciência.
Esse Sarney, que começou
cedo no mandato federal, nunca mais saiu da política, que tem a porta de
entrada, mas não deixa saída senão pelas janelas que se abrem para o
desconhecido: nunca mais saiu da política, que o levou, sem consultá-lo
previamente, à Presidência da República, desorganizada e tensa, no retorno à
democracia (sem passar pelas urnas, que falam pelo povo mas não filtram as
impurezas e os interesses menores). Fez um governo com altos e baixos, mais altos
e mais baixos do que se esperava. Foi a expressão política de uma situação
incontrolável e contraditória, com raízes no que havia de bom mas também de
menos bom, e de pior como matéria-prima para uma nova época.
Depois da Presidência,
Sarney retornou à planície representativa onde não mais se praticava a palavra
oral, nem se proporcionavam aos cidadãos os maviosos cantos das sereias
liberais que encantaram a opinião pública no passado. Recomeçava, aparentemente
outro, o Brasil tolerante e generoso com erros, extravios, desvios e
descaminhos históricos. Nem mais a exuberância verbal reprimida.
Não sobreviveria a nova
geração, que marcaria passo sem sair da expectativa retórica da Constituinte de
1946. Até que, depois de passar pelo rito da social-democracia, um operário foi
alçado à Presidência da República no começo do novo século. Não era uma
incógnita. Sem qualquer abalo, nem temor desmedido, o Brasil voltava ao natural
e, o natural, ao que havia de menos bom, com o pior à disposição.
Sarney tem razões que a
própria reeleição desconhece. Presidentes deveriam ser encapsulados num
compromisso legal como conselheiros da República, com recursos mínimos para o
exercício de se reunirem com os presidentes, a convite deles, e, havendo
necessidade, falarem com o desinteresse e o descompromisso de partidos e
tendências políticas. As palavras do senador que, em mais dois anos, se
aposentará com o mandato em curso — não pela oportunidade de baixa ressonância
política — valem por um intervalo de sabedoria, de que nem tomam
conhecimento os que chegam e despertam nostalgia nos que fazem a mala para o derradeiro mandato em esgotamento.
O ex-presidente poderá meditar objetivamente sobre o
Brasil
A política, por sua
natureza, só tem a porta de entrada na ressalva de Sarney, e deixa às janelas,
que servem também para a defenestração literal, fazer despejos. Por lei
mas, por fora da lei, pode-se também exercer serventia moral por vontade do
eleitor.
Em tom confidencial, com
voz levemente velada e como quem confia, Sarney falou, certo de que,
daqui para a frente, à medida que se afastar da ação política, seja como
presidente de partido ou ex da República, poderá meditar objetivamente sobre o
Brasil. Não lhe faltará tempo no tempo útil que lhe restar. Deixa aos
interessados e desinteressados a maldição que faz falta: “As medidas
provisórias destruíram o Congresso”. Mas não pediu: “Orai por nós”. Não mais se
habilitará a cargos eletivos ao passar à etapa superior da vida, que não está
em jogo. Basta-lhe saber que é o suplente de si mesmo. Aceita ser julgado pelas
últimas palavras que tiver dito. E, como a política só tem a porta de entrada,
vai zanzar por aí ou sucumbir, por temporadas, no Maranhão, que “é saudade que
não passa”.
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